Conheça-te… e regenere.

919. Qual o meio prático mais eficaz para se melhorar nesta vida e resistir ao arrastamento do mal? Um sábio da Antigüidade vos disse: “Conhece-te a ti mesmo“.

Por que se dá tanta ênfase no conhecimento de si mesmo e em que consiste isso de fato? Será possível alguém chegar a se conhecer totalmente? De que serviria isso e como isso repercute na vida prática, se é que há alguma repercussão?

Para estabelecermos algumas considerações a respeito do tema vamos resgatar algumas idéias introduzidas por três personagens de vulto da nossa história: Santo Agostinho, Allan Kardec e Viktor Frankl. Resumidamente, diremos que Santo Agostinho estabeleceu o vínculo entre a responsabilidade pessoal e a autoconsciência, um vínculo que expressa a condição mesma para que alguém adquira consciência de si mesmo. Allan Kardec, por sua vez, traz à luz a possibilidade de investigar o reino da alma de forma objetiva, isto é, não apenas enquanto tema filosófico, mas sobretudo como prática efetiva ao alcance do homem comum por meio da mediunidade. Já Viktor Frankl, pelas experiências vividas no campo de concentração de Theresienstadt, estabelecerá um método para se lidar com as doenças noogênicas (i.e., doenças de origem espiritual), caracterizadas por uma espécie de sofrimento da ilusão estabelecido pela tentativa de se lidar com o non sense percebido na própria vida.

Veremos que, num quadro mais geral, ao combinarmos tais idéias poderemos alicerçar de forma mais realista o “como se conhecer” sem que isso acabe se tornando fonte de  frustração ou neurose como pode acontecer se a prática recomendada por Santo Agostinho for mal entendida. Colocando em forma de pergunta, diríamos:

Como se conhecer sem se deixar tomar de um amor doentio a si mesmo ou de um horror de si mesmo?

Esse foi também o enfoque dado à exposição do tema “Conheça-te… e regere”, estabelecido pela XXVII CONRESPI, realizada em 21/02/2009, na cidade de Barretos, SP, tendo sido o assunto dividido nos seguintes tópicos:

  • Introdução
  • Apresentação do contexto: mundos de expiação e provas; mundos regeneradores
  • Caracteristicas dos Espíritos nesses mundos ( rebeldia e paz)
  • O problema essencial: doenças noogênicas (do Espírito)
  • Três contribuições: Santo Agostinho, Allan Kardec e Viktor Frankl
Esquema dos conceitos

Esquema dos conceitos

Para entrar no assunto, vamos observar uma coisa curiosa: o fenômeno das previsões. O assunto “conheça-te a ti mesmo”, por estranho que isso possa parecer, tem relacão com o conhecimento antecipado sobre o futuro, inclusive do planeta.Isso porque é do meu interesse conhecer  meu futuro, ao menos como futuro possível. De que valeria todo o esforço do presente se eu tivesse a certeza de que amanhã nada mais existirá? Seria mais inteligente, então, entregar-me ao  “aproveitar o dia”. Mas ainda há outra coisa. De que modo o meu futuro (e o do planeta) está ligado a minha maneira particular de ser? Haveria laguma relação entre o tipo de mundo em que estou e a minha maneira particular de viver (e ser)? E se o mundo mudar, eu vou mudar também, assim de forma automática? E se apenas eu mudar?

Tratando-se de previsões sobre o mudno, é fácil encontrar na Internet uma certa quantidade de mensagens espirituais e trabalhos supostamente baseados em escritos religiosos avisando de mudanças globais no planeta. Coisas como:

  • a entrada do planeta no cinturão de fótons da constelação das plêiades, estabelecendo para 2012 como o ano do início da regeneração da humanidade,
  • a Profecia Maia com a previsão de alguns que o fim do mundo se daria a 21 de dezembro de 2012,
  • a era atual de Kali Yuga segundo a doutrina hinduísta,
  • etc.

Será tudo isso verdade? E se for? O que tudo isso tem a ver conosco? O que fazer? Esperar? O curioso sobre previsões, profecias, etc, é que nunca sabemos com precisão o que vai ocorrer e como vai ocorrer. Isso na hipótese de que vá ocorrer. E isso não parece ser acidental. Que previsões corretas existam, concedemos. Mas, como isso se coaduna com o livre-arbítrio? Então parece que é o espaço de liberdade do homem que acaba por determinar que nunca se saiba como e o que vai ocorrer com precisão. Além disso, há alguns dados sobre a forma como nós elaboramos nossas concepções, algo inato na espécie e na nossa fisiologia até, que nos leva a perder em precisão em função da maior amplitude da extensão. Ilustremos com um exemplo. Olhe para algum objeto a sua frente. É possível ver detalhes dada a proximidade. Mas o contexto, o pano de fundo onde localizamos o objeto, acaba reduzido ou restrito. Agora afastemos o objeto. O que acontece? O pano de fundo se amplia, ganhamos uma dimensão maior de ONDE está o objeto. Mas à custa de perder os detalhes do QUE é ou constitui o objeto. O que queremos dizer com isso é que esse processo não é fortuito ou acidental. A mesma coisa acontece na dimensão cognitiva do ser humano e, por consequencia, atinge tudo o que o homem elabora em termos de conhecimento, quer do passado, quer do futuro. Portanto, mesmo as previsões sofrem tal influência. Não é de espantar, pois, que as previsões sejam apenas “lembretes” de que há um comando, uma ordem, além da nossa desordem experimental pessoal, o que vale dizer, da nossa vontade. Mas essa questão de transformações no mundo também pode ser encontrada em O Evangelho Segundo O Espiritismo. Lá encontramos informações sobre os diferentes mundos da criação. Se nos detivermos um pouco mais nas descrições desses mundos, vamos notar que é possível estabelecer uma diferença essencial entre dois desses tipos de mundos que nos interessam particularmente. Algo que agrupa a grande maioria dos seus habitantes, conferindo-lhes a classificação como um mundo específico. Disso tudo, o que nos interessa considerar diz respeito à psicologia dos seus habitantes, ou seja, o comportamento, as atitudes que esses homens teriam diante da vida, do mundo. Assim fazendo, destacamos:

  • Mundos de expiação e provas: lugar de exílio para Espíritos rebeldes à lei de Deus, tendo de lutar, ao mesmo tempo, com a perversidade dos homens e com a inclemência da Natureza, desenvolvendo assim as qualidades do coração e as da inteligência.
  • Mundos Regeneradores : a alma penitente encontra neles a calma e o repouso e acaba por depurar-se:
    • alma liberta das paixões desordenadas, isenta do orgulho que impõe silêncio ao coração,
    • isenta da inveja que a tortura, do ódio que a sufoca
    • em todas as frontes vê-se escrita a palavra amor
    • perfeita eqüidade preside as relações sociais
    • todos reconhecem Deus e tentam caminhar para Ele, cumprindo-lhe as leis



    Características dos Mundos

    Características dos Mundos

Ora o que salta à vista é a condição de rebeldia ou de docilidade dos seus habitantes como diferenças entre os dois tipos de mundo. Já em outro livro, Mereça Ser Feliz, por Ermance Dufaux, psicografia de Wanderlei Soares de Oliveira, relata Eurípedes Barsanulfo que nós teríamos escolhido “abandonar a segurança da plenitude, em comunhão com as Leis Divinas, pela opção da “liberdade” para construir o caminho da insatisfação e da insaciedade através do egoísmo”, e que

“Nesse trajeto de distanciamento da “luz paternal” nasceu o maior inimigo de todos nós, o orgulho, como sendo saliente sentimento de superioridade que nos vimos obrigados a gestar para “encenarmos” a segurança que perdemos por “desligarmos” do Pai. Sentimento esse que nos transportou a todo tipo de arbitrariedades nos domínios da ilusão, ampliando mais e mais nossa frustração e desajuste consciencial.”

O paralelismo com a descrição do mundo de provas e expiações não poderia ser mais clara. Rebeldia é a nossa característica mais notória. Chegamos até o absurdo de retratar fases de nossa vida psicológica como naturalmente rebelde, como se faz, às vezes, em relação à adolescência. Curioso é que quando afirmam isso, o único apoio que usam para fundamentar tal coisa são dados acidentais sobre o ser humano, nunca essenciais, como teria de ser. Ou seja, há algo na essência do homem que o leve a ser rebelde? Não parece ser o caso. Típica conclusão de uma lógica ainda infantil. Então, qual seria o problema essencial na questão sobre tais mundos regeneradores e a nossa participação deles?

Veja que isso nada tem a ver com as previsões apocalípticas ou não. Tratamos de questões de ordem psicológica, isto é, aspectos que ocorrem na nossa intimidade, na nossa maneira específica de ser e de agir neste ou em outro mundo. Então, o que acontece conosco nessas circunstâncias, isto é, enquanto habitantes típicos do mundo de expiações e provas? Vamos verificar que há nisso uma relação com o que chamaríamos de doença espiritual, doença do Espírito, ou noogênica, isto é, de origem espiritual, termo usado pelo médico psiquiatra austríaco Viktor Frankl – ele não foi o primeiro e nem o último a fazê-lo. Podemos procurar investigar:

  • O que é a doença do Espírito?
  • O que acontece quando o Espírito adoece?
  • Quais os sintomas?
  • Qual o prognóstico dessa doença, isto é, o que podemos prever quanto às possibilidades terapêuticas, quanto à duração, evolução e termo dela?
ideias

As seis doenças do Espírito contemporâneo

Baseando-se na sua experiência no campo de concentração de Theresiendtadt, relatado em seu livro Man´s Search for Meaning (Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração), pode ele asseverar que a doença do Espírito se traduz pela experiência do absurdo, pela perda do sentido da vida, produzindo sofrimentos no ser. Relata ele, então, que, entre todas as misérias e sofrimentos que eram levados a experimentar no campo de concentração, duas atitudes podiam ser percebidas em quem as experimentava:

  • ou se reduziam abaixo da condição de animais, literalmente se asselvajando para sobreviver, morrendo mesmo antes de morrer,
  • ou então, acontecia uma sobrelevação ao sofrimento, conservando a sanidade e o autodomínio.

Mas as causas de um ou outro tipo de comportamento não pareciam ser o  sofrimento indizível em si mesmo. Antes estavam na consciência  de um forte sentimento de dever, de uma missão, de uma obrigação, de um sentido de vida que possuíam e que os tornava capazes de suportar tudo, em oposição ao sentimento de viver uma futilidade absurda.

Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu a logoterapia, ou terapia do discurso – um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subtefúgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca do sentido. Mas, como poderia ter o sentido um poder curativo em si mesmo? Poderia ser inventado? Deveria ser descoberto? Aí uma outra questão aparece e que nos remeterá à experiência vivencial de outro grande homem na nossa história: Santo Agostinho (como veremos). A mente, segundo Fankl, não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males porque o seu mal consistia em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe era superior. Note o paralelo com as colocações do Espírito Eurípedes Barsanulfo. Então, em vez de criar um sentido, a mente deveria se submeter a ele, uma vez encontrado. Segundo o autor,o sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. Para ele o sentido da vida não é um produto cultural, inventado pelo homem. Antes uma realidade do ser, ontológica, portanto. O sentido da vida simplesmente existe: tratemos de encontrá-lo, portanto. Note a semelhança com a perspectiva apresentada por Allan Kardec no livro O Que é o Espiritismo, ao explicar a origem do sentimento chamado consciência, isto é, como “resolução tomada pelo Espírito antes de nascer”. Mas, como fazer isso? Segundo Frankl, buscando responder à seguinte pergunta:

  • Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo?

Ao tentar responder tal questão, normalmente com a ajuda do terapeuta, o dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Ou seja, nenhum homem inventa o sentido da própria vida: cada um de nós seríamos como que envolvido, cercado pelo sentido da própria vida, o qual, demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da nossa realidade pessoal , e da visão dessa realidade pessoal só visível desde dentro, vai emergir, inexorável e límpido, o dever a cumprir. Lembramos com isso de Sua Voz em A Grande Síntese quando afirmava “cumpra cada um o seu dever e a necessidade de luta cairá por terra”. Assim, ao invés de estabelecer um quadro de características do indivíduo com aspectos transitórios como forma de conhecimento de si mesmo, dissolvendo a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser que é também o seu ponto mais alto, levantando desde então a obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Eis, em seu valor universal o sentido da vida, embora individual em seu conteúdo. Por isso também não adianta discutir o sentido da vida sem realizá-lo. Isso seria negá-lo, pois ao realizá-lo já não é mais preciso discutí-lo, porque ele se impõe como uma evidência:

Transcender-se é uma necessidade para a saúde espiritual.

    Isso nos remete a outra personagem da história: Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho: Como entender esse transcender-se?

    É Santo Agostinho que estabelece um quadro interesssante quanto a essa questão. Está na questão 919 de O Livro dos Espíritos, quando ele estabelece como a forma mais prática, mais eficaz, para evitar o arrastamento do mal e melhorar-se nessa vida o “conhecimento de si mesmo.” Mas o que quer isso dizer? Sentar-se numa poltrona e ficar repassando os erros do dia parece ser desgastante e até masoquista.  A necessidade do homem é realizar sua perfeição, isso é o seu bem. O mal representa o desvio em relação e tal propósito, o que acaba tornando o Espírito doente, ou seja, incapaz de distinguir aquilo que está apenas na sua mente e que não corresponde à realidade, o ensimesmamento da mente, como diria Viktor Frankl. Mas para isso o conhecimento de si mesmo é vital, isto para se evitar, como colocado pelo Espírito de Eurípedes Barsanulfo acima, o endeusamento de si mesmo, que é a inteligência quando recai sobre si mesma, que se orgulha de si mesma. O conhecimento de si mesmo, enquanto conhecimento, necessita que sejam utilizados esquemas mentais da própria mente, no sentido piagetiano. Assim, como saber se tais esquemas não estão “contaminados” na sua origem, fruto de delírio passional (amor narcisista)? Somente retornando à realidade de onde eles provieram na sua formação. Veja só a citação a seguir:

    “Os que se conhecem sabem o que lhes é útil e distinguem o que podem fazer daquilo que não podem: ora, fazendo aquilo de que são capazes, adquirem o necessário e vivem felizes; abstendo-se daquilo que está acima de suas forças não cometem faltas e evitam o mau êxito; enfim, como são mais capazes de julgar os outros homens, podem, graças ao partido que daí tiram, conquistar grandes bens e livrar-se de grandes males… Contrariamente, caem nas desgraças.”  Xenofonte, Memoráveis, IV, II, 26.

    São palavras bastante apropriadas pois traduzem a capacidade de não nos iludirmos em relação a nós mesmos, ou seja, capacidade de superar as ilusões de toda sorte. Mas o apelo ao autoconhecimento, encontrado em O Livro dos Espíritos, na resposta atribuída à Santo Agostinho, remete à finalidade da trajetória do Espírito na Terra como “melhorar-se nesta vida e resistir ao arrastamento do mal“. Mas será que Santo Agostinho imaginava um indivíduo sentado numa poltrona, no fim do dia, pensando no que havia feito e repassando toda a sorte de mesquinharia de que tivesse sido o autor naquele dia, e repetindo isso dia após dia, construindo assim um quadro pavoroso de si mesmo? O que quer dizer ele com tudo isso. Bem, quando procuramos avaliar alguma idéia de alguém, não importa se Espírito ou homem, precisamos recorrer ao contexto de onde brotou essa idéia. Por que isso? As idéias até poderão ter alcance universal, mas as palavras (os termos) utilizados na sua exposição são contruídos através da experiência do autor. Ou seja, não há palavras destituídas de significados (para o autor) e reencontrar o significado que tinham para ele é ir ao encontro com o seu pensamento genuíno.

    Pensando assim, busquemos saber um pouco mais de Santo Agostinho. Como vivia, onde vivia, quais eram os principais acontecimentos da sua época? Precisamos de uma perspectiva da realidade que o cercava bem como da psicologia que regulava o seu comportamento de então. Agostinho nasceu na Tagasta, Numídia, na África. Romano da África, permaneceu muito tempo alheio à Igreja, embora sua mãe fosse religiosa, buscando nos prazeres carnais e nas seduções do maniqueísmo uma resposta à sua inquietude. Convertido em Milão sob influência do bispo Ambrósio, aí foi batizado em 387 e voltou à África, onde se desfez de seus bens para promover, com alguns companheiros, uma forma de vida cenobítica, experiência que manteve como bispo e que lhe permitiu elaborar, para uso dos religiosos, aquela que seria chamada a regra de Santo Agostinho. Mas qual era o cenário “material” em que vivia Agostinho?

    Por volta do século III, o império romano passava por uma enorme crise econômica e política. A corrupção dentro do governo e os gastos com luxo retiraram recursos para o investimento no exército romano. Com o fim das conquistas territoriais, diminuiu o número de escravos, provocando uma queda na produção agrícola. Na mesma proporção, caia o pagamento de tributos originados das províncias. Em crise e com o exército enfraquecido, as fronteiras ficavam a cada dia mais desprotegidas. Muitos soldados, sem receber salário, deixavam suas obrigações militares.

    Resumidamente, esse era o cenário em que vivia mergulhado: um ambiente de corrupção, licensiosidade e inquiteações. Sua atitude psicológica até a sua conversão? Maniqueísta.  E o que significaria isso em termos de comportamento?O que é o maniqueísmo?

    RAYMUNDO DE LIMA, psicalnaista e professor, afirma que “o maniqueísmo é uma forma de pensar simplista em que o mundo é visto como que dividido em dois: o do Bem e o do Mal. A simplificação é uma forma primária do pensamento que reduz os fenômenos humanos a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso ou aquilo, é ou não é. A simplificação é entendida como forma deficiente de pensar, nasce da intolerância ou desconhecimento em relação a verdade do outro e da pressa de entender e reagir ao que lhe apresenta como complexo. (…) O maniqueísmo é uma forma religiosa de pensar; não como religião autônoma, mas enquanto comandos camuflados que influenciam os discursos do cotidiano, inclusive as religiões formais e seitas. Um dos mecanismos mais utilizados pelo ser humano para se livrar do Mal é a projeção de sentimentos ou figuras inexistentes como operadores simbólicos do psiquismo. A atividade psíquica que sustenta a projeção é de ordem inconsciente, tal como todos os demais mecanismos de defesa. Odiar o vizinho, ou não aceitar uma tendência sexual, ser invejoso, etc. poderia forçar o psiquismo a projetar essas idéias e sentimentos em outras pessoas, personificadas enquanto “diabo”, “satã”, enfim o Mal. Uma nação inteira pode ser tomada pelo histerismo de projetar numa só figura o Mal que, no fundo, é dela mesma. Mas, ela própria não se dá conta disso, visto ser uma ação inconsciente que demanda purificação de Mal.”

    Propõe o autor acima, e com razão penso eu, que poderíamos fazer como Nietzsche, que propõe pensarmos para além do Bem e do Mal. Assim a atitude cética pareceria um remédio contra a dualidade estabelecida pelo maniqueísmo. Equívoco, acho eu. Porque o ceticismo não é simplesmente a suspensão do juízo. Aliás, boa parte do mundo hoje é cética e isso nada adiantou.Mas disse com razão porque é uma saída possível à confusão que se estabelece na mente: não vou mais pensar nisso, não adianta, passa a ser o refrão. Mas temos que pensar em algo, isso é inevitável. E, como dizia Tomas de Aquino: “Temo o homem que só conhece um livro (Timeo hominem unius libri)”. O ceticismo é, ele próprio, uma adesão a uma espécie de monoideísmo quanto a como buscamos ver o mundo, ainda que reduzido a um instrumento para ver esse mundo. Voltando a Santo Agostinho, ele vai encontrar nas idéias maniqueístas um suporte “explicativo” para justificar as próprias atitudes, fruto evidente de uma confusão mental ainda presente na sua forma de pensar de então: como filosofia dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Ora, essa é sem dúvida uma interessante maneira de tentar burlar a responsabilidade sobre as próprias ações. E é aí que vamos encontar a genialidade desse Espírito por ocasião da sua conversão. O que aconteceu? Acreditamos, como ele mesmo dá a entender em seu Confissões, que tenha simplesmente se cansado de ser o que era. Esse cansaço representa a capital diferença na aplicação da sua recomendação colocada em O Livro dos Espíritos. É aliás a força motivadora e sustentadora do processo. Não mais se comprazer em ser o que se é, mas tendo que ser alguma coisa, exigirá que se escolha algo melhor, que se busque, enfim, novas idéias para esclarecer quanto ao próprio futuro e critérios para avaliar as mudanças desejadas.

    Veja que há aqui uma atitude otimista em relação a si mesmo, pois não se está buscando simplesmente os próprios defeitos e sim reconhecê-los sabendo que somos capazes de fazer melhor por – aliás Santo Agostinho era possuidor de uma capacidade mental impressionante e que foi utilizada por ele para entender melhor a própria situação. Esse fato é importantíssimo porque significa que ele fora capaz de “ver'”, i.e., ajuizar com mais precisão e clareza o póprio futuro a partir das escolhas que então faria.

    Repare, então, que a atitude pessoal era de esperança, de confiança em Deus, quando sugestiona:

    As questões essenciais

    As questões essenciais

    1. que se estabeleça um diálogo com a consciência e, através dele,

    2. se revise as próprias ações quanto ao dever que lhe cabe e a possíveis queixas de terceiros sobre si mesmo.
    3. considerar  que o esclarecimento sobre as causas latentes das falhas será feita com o auxílio divino e de entidades superiores (“anjo da guarda”) de onde se tirará também a “força para se aperfeiçoar”.

    Em resumo, ele conclama para que cada um explore a própria consciência para “arrancar as más tendências“: “Formulai, portanto, perguntas claras e precisas e não temais multiplicá-las: pode-se muito bem consagrar alguns minutos à conquista da felicidade eterna.”

    Mas, e o que são essas más tendências? O que significam? Não podem ser inerentes à nossa constituição espiritual. Entendamos bem isso. Se fossem parte da essência do que somos, não poderiam ser modificadas sem que perdêssemos a nós mesmos, ou aquilo que somos. Então, o que são? Sem dúvida detêm a propriedade de serem transitórias, acidentais, portanto. Tais “más tendências” são invariavelmente percebidas dentro de um quadro, de um contexto, envolvendo critérios de comportamento e ação. Identificamos como “má” aquilo que vai contra o bem do ser de alguma forma. Chamamos de tendência, do latim tendentia (inclinar-se para, ser atraído por), a uma certa propensão que possuímos em direção a alguma coisa mas que se evidencia no campo da vida prática, ou seja, percebemos uma tendência na vida de relação do indivíduo, com ele mesmo e com o mundo a sua volta. Estamos no campo dos efeitos, portanto. Mas qual a origem dessas tendências? Lembrando o que diziam os Hindus:

    O homem é um ser que valora e que faz escolhas a partir do que considera que tem algum valor.

    De alguma forma, ao escolhermos, pomos em ação um mecanismo complexo de avaliação com base na importância que damos àquilo que captamos, que percebemos. E isso se estabelece de forma automática – pois privilegia a sobrevivência da espécie e não apenas do indivíduo em particular. Assim, há em nós mecanismos que nos levam a privilegiar algumas coisas em detrimento de outras tão somente para que a espécie sobreviva. Tal mecanismo tem uma ação focada no geral, mesmo que a custa do sacrifício do indivíduo. Portanto, não é contextual. Assim, ao introduzir contexto, isto é, o aspecto criado por nós, na nossa história  única, somos defrontados com mecanismos de avaliação embasados na ação generalizadora – o mesmo que acontece comigo acontece com todos, a partir de percepções bastante simples do quadro real acontecido. É como se houvesse filtros que em primeira mão vão nos guiar a ação diante do que nos acontece (nos estimula). E isso tem que ser assim, pois representa uma economia do ponto de vista funcional para a Natureza. Estamos na transição do reino do instinto para a consciência e possuímos mecanismos automatizados com vistas à sobrevivência.

    Se examinarmos um pouco mais profundamente isso, veremo que tais mecanismos têm por suporte um universo bioquímico produzido no nosso corpo. É a partir da ação hormonal e do sistema nervoso, por exemplo, que construímos o estado propício de que tratamos aqui como tendência. Ora, tais estados corporais poderiam ser vistos como substâncias químicas produzidas no nosso corpo e que afetam de pronto nossas percepções e ações. Por serem substâncias têm efeito mais duradouro do que a mera estimulação  nervosa. Bom, qual a causa eficiente de tais substâncias? Qual o agente que as provoca? Uma vez que nosso corpo vai realizando um constante processo de adaptação ao mundo, será a partir do que foi vivenciado que vamos encontrar as mais diversas respostas bioquímicas produzidas no corpo. Isso envolve desde as habilidades mais básicas como aprender a andar até as mais sofisticadas como ser capaz de se sensibilizar diante de uma história de amor. De certa forma isso nos lembra Piaget com seus esquemas de ação construídos pela mente. Tais esquemas se traduzem numa rede bioquímica de substâncias postas em ação em determinados contextos e que foram assim construídas pela ação – reação desencadeada em nós com a repetição desses contextos muitas e muitas vezes. Adaptamo-nos , portanto, ao que nos acontece, mas sempre a partir daquilo que percebemos e realizando também alguma mudança em nós mesmos.

    Um exemplo pode ser visto ao aprendemos a tocar algum instrumento. Adaptamos a nossa musculatura (mãos, braços, etc) ao violão por que conseguimos segurá-lo com as mãos e braços e, ao mesmo tempo vamos adquirindo uma certa capacidade de identificar notas desafinadas quando tocamos mal. Algo sempre muda em nós quando ocorre a adaptação. Mas isso não quer dizer que o processo seja fácil e nem mesmo que o resultado seja o melhor do ponto de vista do bem estar longo prazo. Se assim fosse, seríamos apenas robôs dotados de redes neurais sofisticadas para usar uma imagem tecnológica. Nesse processo intervém também a nossa imaginação, manifestada por meio do que idealizamos estamos no campo dos conceitos, dos pensamentos. O ser humano é dotado dessa capacidade de se projetar mentalmente num futuro. Note bem que usamos “um futuro” e não “o futuro”, porque tal capacidade não significa presciência infalível. É sempre um futuro potencial, virtual. Assim, voltando ao aprendizado do violão, o processo será influenciado pela expectativa que possuirmos de, por exemplo, nos tornar ótimos violonistas nas rodinhas de amigos, granjeando-lhes a simpatia. Repare quanto as expectativas influenciam no que percebemos e também na maneira de “organizarmos” as idéias com o que foi percebido. Por isso a vivência assume caráter necessário na reconstrução desses esquemas. Note também que esse processo não é linear, isto é, não tem apenas começo , meio e fim e pronto. Ele começa e o resultado passa a influenciar o próprio processo, o que chamamos de realimentação: de certa forma, cada existência introduz no nosso campo de ação aquilo que construímos ou mobilizamos em existências pregressas e isso se apresenta para nós como algo automático, algo que emerge do nosso psiquismo na existência atual.

    Então, tal inclinação (tendência) é construída de alguma forma através das escolhas por nós feitas – fazem parte da história por nós construída, são aspectos da nossa história, portanto, influenciadas pelas nossa maneira particular de “fazer a história”, das nossas escolhas. Tais escolhas poderiam, então, nos levar a uma propensão por algo que pode até nos fazer mal, mesmo que sem consciência disso. Escolhemos a partir daquilo que consideramos valioso, onde preferimos o que para nós tem valor e preterimos aquilo que, ao contrário, apresenta-se desmerecido de valor diante dos nossos olhos. Assim, no próprio ato de escolher usamos o que sentimos sobre os valores que nos representam o bem e, dentro desse aspecto, podemos muito bem nos enganar. Podemos, motivados por diversas causas, escolher aquilo que causa mal ao invés de bem, considerando o tempo como juiz implacável de nossa vida. E quem se engana? Mário Ferreira dos Santos chama de tímese essa capacidade de valorar as coisas.

    Mas, por que o homem chega a valorizar erradamente as coisas? Como entender isso?

    Vamos usar da literatura para entender isso um pouco. Apelemos para duas personagens: Narciso (ou o auto-admirador, da mitologia grega) e Quasímodo (o Corcunda de Notre-Dame, do livro de Vitor Hugo). Expressões doentias do amor exagerado pela imagem de si mesmo e do horror a si mesmo. Duas formas ilusórias de perceber a si mesmo, embora sirvam de base para a percepção de todas as demais relações com o mundo a volta. Dois extremos de percepção equivocada. Duas manifestações de carência e recusa.

    Ora, sendo o Espírito a essência, podemos entendê-lo como o ser estudado pela metafísica (ontologia) e, com base nisso, apelamos para Constantin Noica em seu As seis doenças do espírito contemporâneo, de 1978, para entender tal doença do ser. A abordagem interessantíssima do autor, um verdadeiro tratado de Ontologia,  estabelece que o espírito (o ser) pode “adoecer” no que se refere à realização de si mesmo, manifestando-se de duas formas: uma interior, subjetiva, perceptível pelo ser como sofrimento, dor. Outra, exterior, objetiva, pois se refere ao desajuste do mesmo indivíduo a algum contexto seu. Por desajuste queremos dizer apenas uma alteração na adaptação deste mesmo indivíduo ao seu ambiente. Neste último caso, outros indivíduos são capazes de identificar tal desajuste.

    Do ponto de vista funcional o Espírito pode, então, adoecer. Mas não da forma como comumente pensamos uma doença. Neste caso chamaríamos, como faz Noica, de precariedades possíveis do ser, ou seja, ele próprio funciona mal, atua mal, de modo aquém do que seria capaz de fazer, agindo de forma contraprodutiva à harmonia.

    E o que seria tal harmonia? É a ordem no ser e no seu funcionamento em relação ao universo. Para os pitagóricos o símbolo da harmonia era o seis, indicando, entre o indivíduo e o restante que o cerca, uma perfeita reciprocidade de atuação nas relações possíveis estabelecidas. Assim, teríamos:

    EU <–> OUTRO
    ou
    EU – tomado em si mesmo[2], isto é, nas relações que temos para conosco mesmo
    EU atuando sobre[3] o OUTRO
    EU sofrendo a atuação[4] do OUTRO

    OUTRO – tomado em si mesmo, isto é, nas relações que tem para consigo mesmo
    OUTRO atuando sobre o EU
    OUTRO sofrendo a atuação do EU

    Todo indivíduo possue traços que lhe definem o ser, e, imerso numa totalidade, numa condição existencial, sofre-lhe as determinações, condição que lhe permite situar-se nessa mesma existência. Ortega&Gasset já dizia “Yo soy yo y mi circunstancias”. Talvez já aqui possamos enxergar a importância da relação com o mundo: instrumento para a construção do significado na nossa alma. Pois é a partir do que sofro devido à ação do outro que construo ou refaço significados na minha vida.

    Assim, a proposta cristã não poderia deixar de levar em conta a necessidade do homem partir para o “TU”, para o que não é ele, dada a excelência da sua origem superior, representada por Jesus ao estabelecer sue fundamento no AMOR. Só que não como amor transitivo, que transita para um objeto. É sim o amor que quer o bem da coisa amada. E isso pressupõe a elevação do EU, mas não com o reforço do EGO (no sentido de um endeusamento de si mesmo – narcisismo, i.e., quando a inteligência julga que já atingiu o máximo em si mesmo). Propõe elevar o homem sem fortalecer o narcisismo. Lembremos aqui as três tentações sofridas por Jesus e simbolizadas assim no evangelho: necessidade dos bens materiais (fome), a tentação política (busca pelo poder), e o narcisismo (bastar-se, estar acima até de Deus).

    Há uma diferença aqui: trata-se do ÁGAPE e não do EROS, ou mesmo o PHILIA com relação ao amor. Mas, no nosso caso de seres ainda com percepções acanhadas será mesmo necessário intelectualizar a situação para que se consiga despertar o amor nessa dimensão ágape. Isso fica claro quando somos levados a enfrentar situações que envolvem pessoas que nos fizeram mal. Como amar alguém assim? Não se trata de amar o estado em que a pessoa se encontra, normalmente identificado com ela. Trata-se sim de amr o que ela poderá vir a ser, o que lhe está dentro das possibilidades conforme a natureza humana dela. Estamos trabalhando na dimensão da compreensão sobre um futuro possível – resultado de uma operação do intelecto, faculdade que me permite considerar futuros possíveis, fazer projeções plausíveis. Tudo isso servindo como “instrumento” para previnir que caiamos nas armadilhas das nossas próprias percepções passionais – impedindo-nos a elevação dos sentimentos. É mais ou menos como a situação em ue alguém nos pisa o pé causando muita dor. Olhamos para ver o que houve e, ao percebermos que se tratava de  um indivíduo cego, logo aliviamos a nossa própria impressão emocional “negativa” incial através da compreensão das limitações daquele que nos pisou o pé. Por que a raiva ou o espanto passam? Comprendemos a ação do outro dentro de um quadro que não nos coloca  como vítimas dele. Dizemos: foi um acidente. Da mesma forma, a ação no mal, considerada dentro do quadro de compreensão acanhada daquele que se lhe torna agente, deixa de ter um caráter de ação deliberada em relaço a nós e passa a ser vista (compreendida) como estágio específico, mas transitório, de um ser ainda a caminho de mudanças. A utilidade real disso está no caráter de liberdade que nos propicia tal compreensão, pois não ficamos “presos” no que aconteceu. Deixamos de sintonizar com as precariedades de que se reveste o outro e permanecemos em sintonia com a força ordenadora de tudo, inclusive da situação que nos envolve: Deus. Superamos o narcisismo através da compreensão deste propósito superior de nossa vida. O cristianismo verdadeiro trata exatamente dessa superação através de um caminho, onde, lembrando Khallil Gibran:

    A alma não percorre uma linha, nem cresce como um caniço. A alma desvenda-se a si própria como um lotus de incontáveis pétalas. (Khalil Gibran)

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